sábado, fevereiro 04, 2006

Munique

Deus é fiel. Resta saber a quem.

Tenho lá meus quase 28 anos de vida. Até o meu pré-vestibular eu ainda acreditava em grandes causas, coisas como socialismo, comunismo, anarquismo, solidariedade, revolução, etc. Eu era de esquerda, achava todos os direitistas um fdps desalmados para os quais o empalamento seria sessão da tarde.

Eu era um idiota, eu sei.

Felizmente a gente cresce e, nesse crescimento, vai começando a enxergar as coisas, the real thing, das realpolitik, de perto. Felizmente, entendam, é um modo de dizer. Não sou mais feliz do que era há anos atrás. A gente vai embrutecendo e perdendo o encanto, virando concreto, encolhendo. A gente, entendam, também é um modo de dizer. Falo de mim. Não sei falar de mais ninguém.

Quando entrei na faculdade, e isso já tem uns bons sete anos passados, não acreditava mais em muita coisa. Votei no Lula com alguma relutância porque já desconfiava que o petismo era algo meio estúpido, tipo acreditar em algo porque não há nada melhor pra pôr no lugar. Desnecessário dizer que votei no Lula e anulei o restante dos votos. Não acreditava e agora consigo acreditar ainda menos no sistema político e partidário do Brasil. Criancinhas na África, no Iraque, na Seca? Truque publicitário. Fiquei áspero assim. Claro que há pessoas fodidas e, especialmente, mal-pagas por todo o lugar mas não são elas que me levam a me comprometer com quem quer que seja que se utilize das imagens delas sob uma certa luz ou uma certa música.

Não tenho muita tendência a acreditar nos outros. Me conheço o suficiente pra saber como alguém pode inventar qualquer história para se justificar perante o mundo, ou simplesmente conseguir uma foda antes de dormir. Por que os outros seriam diferentes? Ou ninguém nunca disse à própria mãe uma cascata qualquer por uma noite de sexo, drogas, roquenrou ou RPG? No final, só devemos contas a nós mesmos perante o que somos ou o que fazemos. Faze o que queres, há de ser tudo da lei.

O que sobrou no mundo foram as pessoas que me interessam. Meus pais, minha família, meus amigos, minhas mulheres. O que importa é quem você ama, quem você amou e quem você pode amar. O que me importa. Ainda assim, você também irá mentir e ser calhorda com algumas dessas pessoas - porque, sei lá, somos todos idiotas em última análise. Essas pessoas são aquelas de quem você espera não o perdão, mas que elas saibam que você não as deixou de amá-las por ser idiota, apenas foi idiota. Perdoar ou não a merda que se faça com alguém não é da sua conta, a não ser que o outro queira que seja.

Munique, de Spielberg, não é um filme sobre judaísmo, ou terrorismo. Seria uma redução ridícula e desnecessária. O que árabes e judeus, ou melhor dizendo dizendo, árabes e ocidentais fazem (homens-bomba, aviões-bomba, cartas-bomba) mundo afora nossa boa e velha polícia faz em cada beco, em cada rua sem asfalto e luz e água, com os pobres e pretos. E vice-versa. Status quo. Munique é uma pergunta. O que, afinal, somos? Do que se trata nossa civilização? Que diabos é a nossa racionalidade?

Nenhum dos lados está certo, não há razão no morticínio. Mas este mesmo morticínio é engenhado com precisão milimétrica - as pessoas precisam de um motivo para matar. Quem move a engenharia, o cálculo, os tiros precisos, as gramas de TNT, é a crença de que o inimigo precisa ser punido. "Quem é o inimigo e quem é você?", pergunta a canção da Legião.

Avner, o agente recrutado pela polícia secreta judaica para vingar os 11 atletas israelenses trucidados em plenos Jogos Olímpicos de Munique em 72 pelo Setembro Negro, organização terrorista palestina, hesita o tempo todo. Ele quer matar, mas não quer ser um assassino. Não pode matar inocentes. Trata-se de um jogo e Avner quer seguir as regras. Spielberg deixa claro que as ações de Avner (e de Israel) são todas seguidas de uma reação. Não há mocinhos, só há bandidos. A culpa acaba por consumir Avner, o homem vai deixando de ser humano, o sono é vigiado, a culpa toma o lugar da sombra. Ao defender sua terra, ele se exila com a família no exterior porque não há segurança na terra defendida. Ao combater um inimigo apátrida, terra alguma é exílio. Não há final feliz porque, convenhamos, basta ligarmos no noticiário para sabermos que não há final.

Deus é fiel. Resta a nós, idiotas, saber a quem.

Um comentário:

Fonseca disse...

A mim é que não é. E lá ele vai querer ser fiel a um ateu?