sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Gladiatores! Violentia!
Poucas vezes um fotógrafo foi tão certeiro no retrato da crônica de violência urbana que vem se tornando o nosso cotidiano. Créditos para Carlos Ivan (Agência O Globo).

A foto diz muito sobre o estado de coisas que vivemos. Ela é assustadora como o crime bárbaro cometido por dois dos três rapazes descamisados sendo exibidos como animais capturados pela sempre exemplar Polícia Militar do Estado do Rio. Sim, há um terceiro elemento na foto que segundo a reportagem do Estadão "a polícia garante que o rapaz não está envolvido no crime".

É o garoto do meio, "identificado como Tiago". Ele seria da quadrilha, mas não participou do funesto roubo do carro que resultou na morte de um menino de 6 anos que acabou preso pelo cinto de segurança do lado de fora do veículo, na pressa dos assaltantes que arrastaram o garoto por 7 km.

Mas retornemos para a foto. Sua publicação é óbvia, é um registro cru de como enxergamos a questão da violência. A começar pelos próprios policiais que não aparentam o menor resquício de pudor ante as câmeras de respeitar a integridade física dos trio, muito pelo contrário. Nota-se a excitação em todos, o gosto de mostrar a população sua eficiência em deter o crime (e, no entanto, o carro roubado com o corpo do menino não foi incomodado por nenhum deles durante seu trajeto).

A imagem aparece na capa do Estadão e com maior destaque no JT , que pertence ao Grupo Estado. Acusa os três do crime, ainda que a própria reportagem aponte dois como culpados. Cadê a responsabilidade de um editor com a verdade da notícia aí? Por que jogar um terceiro elemento que não tomou parte no crime aos olhos de leitores estarrecidos? Por que nenhuma censura à violência policial na legenda da foto?

Num exercício de reflexão, imagine você uma foto contendo o deputado mensaleiro João Paulo Cunha, ACM, que já teve de renunciar a um mandato no Senado para fugir de tê-lo cassado e a comunista Manuela D'Ávila, deputada federal eleita com o maior número de votos no país. Os três caminham lado a lado sob a legenda "Parlamentares mancham a democracia com acusações de corrupção e fraudes". Entendeu?

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Brasilianas

Saiu em DVD e vídeo "Brasília 18%", volta do cineasta Nelson Pereira dos Santos à ficção após "A Terceira Margem do Rio", curta de 94. O título do filme é alusivo ao clima semi-desértico da capital federal, situada praticamente no coração do continente sul-americano em vegetação de cerrado, num imenso planalto, que faz com que a umidade relativa do ar na cidade baixe a percentagens quase inumanas (daí o 18%) e não sei se guarda alguma relação com seu filme mais badalado, o "Rio 40°", que faz alusão ao tórrido verão da antiga capital federal.

Apesar de usar a cidade como cenário nas tomadas abertas, não é um filme sobre a cidade levantada no meio do país por JK num tempo onde talvez ser nacionalista não era algo cínico. Brasília 18% é um filme sobre o poder, sobre o lado humano do poder e como o poder embrutece, corrompe e deforma o que poderia haver de bom em nós. Nessa toada, mas aí já estou no campo da elucubração, talvez Brasília tenha "dado errado" porque o país deu errado também, e deu errado antes.

Não seria absurdo pensar que a idéia de Brasília como coração do país fosse mais que uma metáfora para JK. As largas avenidas e as grandes distâncias marcam a capital idealizada pelo homem que trouxe a indústria automobilística para o Brasil. A arquitetura de Niemeyer executada nos anos 50 soa moderna hoje, um outro século. No entanto, as grandes decisões do país continuam saindo do eixo Rio-SP, o que caracteriza o fracasso da idéia de transferir para a Nova Capital o coração do país. O país continuou velho, digamos assim.

Nessa cidade de contradições, temos o filme de Nelson e personagens de várias matizes sociais na trama que, com elementos de noir, navega pelo cenário político da capital - onde as decisões políticas do país são efetivamente tomadas. O grande barato do filme é que as personagens, antes de serem mesquinhas ou omissas ou generosas, são demasiadamente humanas. Não há o tom preto no branco que poderia tornar o filme desnecessariamente panfletário, mas várias cores para esboçar um quadro muito mais rico. O andar de trama nos mostra que os descaminhos do poder são muito mais tortuosos do que imaginamos.

Brasília 18% acabou me fazendo lembrar de outro filme sobre os meandros do poder na capital federal, este de Lúcia Murat, feito dez anos antes: "Doces Poderes". O filme de Murat trata, com muita perspicácia, das relações perigosas entre as intimidades de políticos e aspirantes e empresários de comunicação e jornalistas. Como separar, então, o pessoal e o político? Mas, afinal, o pessoal não é político?

Em tempo, para aqueles que enxergam Brasília como a representação física da crocodilagem nacional, vale registrar que a antiga capital federal, o Rio, esteve sob jugo (a palavra é essa) do casal Garotinho nos últimos 8 anos e o atual governador eleito, Sérgio Cabral, saiu das fileiras do mesmo PMDB de Anthony e Rosinha. O que mais cresce na cidade? Segundo me contou uma jornalista candanga a quem quero muito bem durante uma visita minha à cidade, as favelas. E acredite em mim, já é um favelário imenso.

Talvez falte a Brasília um filme que a retrate como uma cidade feito outra qualquer do Brasil. E, claro, vergonha na cara de alguns de seus habitantes mais ilustres.